quinta-feira, 24 de abril de 2008

Procura-se um culpado

Texto do excelente Juremir Machado da Silva. Correio do Povo de hoje.

PROCURA-SE UM CULPADO

O assassinato da menina Isabella transformou-se em obsessão no Brasil. Há quem garanta que a culpa é da mídia. Passam-se os dias e o interesse permanece. O argumento dos que culpam a imprensa tem a sua parte de verdade, como todo sofisma. A morte brutal de uma criança branca e de classe média parece ter todos os ingredientes exigidos pela mídia para um reality show. A televisão, sempre tão aberta a folhetins violentos, tem explorado o acontecimento sem o menor pudor. Os espíritos mais lineares, nem por isso menos racionais e convincentes, comprazem-se em afirmar que outros assassinatos de crianças não ganham a mesma atenção. Há nessa competição pelo espaço reservado à morte uma perversidade incontida, como se uma espécie de luta de classes ressuscitada, ou uma busca doentia pela visibilidade no mundo do espetáculo, ultrapassasse todos os limites da vida. É certo que a mídia encontrou um assunto à altura dos seus apetites mais baixos. Mas, ainda assim, parece existir algo mais. O indiciamento do pai e da madrasta de Isabella abriu duas perspectivas opostas. De um lado, convencidos por antecipação, aqueles que, de certo modo, encontram uma satisfação mórbida na possível culpa do casal. De outro lado, sem razão fundamentada, aqueles que rezam pelo aparecimento da famosa terceira pessoa, um louco, um fanático, um desesperado, um desvalido qualquer capaz de modificar o curso dessa tragédia familiar e nacional. O aparecimento de um culpado estranho à família, um tarado, um psicopata, talvez viesse redimir o país inteiro. Se os pais, aqueles que devem proteger um ser indefeso, não forem os culpados, é possível que cada um de nós possa ingenuamente voltar a crer na humanidade.Há, com certeza, exagero nessa postura simplória. O problema é que muitos podem estar sentindo algo como um 'efeito Isabella'. Uma sensação de que o egoísmo do mundo atual atingiu o seu ápice. Termos praticamente fora de uso voltaram à tona com um sentido antes reservado aos contos de fada. É o caso de madrasta. Essa palavra, sem dúvida, caracteriza funcionalmente a situação de Anna Carolina Jatobá. Apesar disso, cada vez que é pronunciada remete a um imaginário tenebroso de bruxa má. Estaremos todos querendo expiar culpas transferindo-as ritualmente para uma madrasta? Ou, ao contrário, estamos sonhando com a inocência do casal para nos sentirmos também inocentados? A entrevista dada pelo casal à televisão, se a culpa dos dois for cabalmente provada, entrará para a história da cultura brasileira como um 'caso de escola'.Seria possível alguém mentir assim diante de um país inteiro? A alma humana foi observada pelo buraco da câmara. A Nação viveu um 'Big Brother' estarrecedor por meia hora. Chegamos ao máximo da obscenidade, a cena sem qualquer véu. Enquanto as ditas provas técnicas se acumulam, apresentadas por uma Polícia científica e que tudo deixa vazar, cresce o desejo sincero de muitos de que toda essa objetividade desmorone. Nada contra a Polícia. Nada em benefício de possíveis 'monstros'. Tudo em favor de um retorno da inocência, uma volta à ordem natural das coisas, com os pais de guardiões dos filhos. Até a hipótese do 'acidente' ou do surto, com uma estratégia posterior de encobrimento por desespero, encontra defensores honestos. Aceita-se tudo, menos a intenção de matar. Ou haverá gozo nacional na dor alheia.
Texto: Juremir Machado da Silva
Correio do Povo, página 4.
Edição de hoje, quinta-feira, 24 de abril de 2008.

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